Entrevista com Fábio de Cristo 24/06/2020 - 11:13

A revista Saúde e Trânsito do Detran/PR demonstra seu reconhecimento aos profissionais que são referência para nós, atuantes no contexto da saúde e trânsito. Aproveitando o lançamento do livro Psicologia do trânsito e transporte: Manual do especialista, como o organizador da obra e um dos autores, entrevistamos o Psicólogo Fábio de Cristo (CRP 17-1296) e doutor em psicologia. Ele é Professor do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e Administrador do Portal de Psicologia do Trânsito (www.portalpsitran.com.br).

 

Revista Saúde e Trânsito: Os psicólogos que atuam na área do trânsito carecem de opções de qualificação profissional, bem como de produção científica brasileira que os embase em seu fazer. A lacuna que existe entre a teoria e a prática é uma dificuldade observada no dia a dia do profissional. O que pensa a respeito? Quais as contribuições do livro recém-lançado aos psicólogos que atuam nesta área?

Fábio de Cristo: O livro “Psicologia do trânsito e transporte: Manual do especialista”, lançado em dezembro de 2019, surgiu dentro de um contexto de análise da formação e da prática do psicólogo. Notava-se a escassez de referências bibliográficas que oferecessem, simultaneamente, subsídios teóricos, metodológicos e práticos aos (futuros) especialistas. Pensando nisso, organizamos o manual para contribuir na diminuição da distância entre teoria e prática, reunindo, de maneira didática, vários temas. Desde o panorama do transporte urbano, dos acidentes de trânsito e das políticas públicas, passando pelos processos psicológicos e pelas práticas profissionais, até os tópicos relativos à avaliação, aos métodos e às medidas psicológicas. Contamos com a valiosa participação de um grande time de colaboradores. Renomados profissionais e pesquisadores do Brasil, da Argentina e dos Estados Unidos da América discutiram a literatura atual e relataram experiências práticas. Esperamos ajudar na qualificação profissional, seja na graduação ou na pós, por meio de múltiplos olhares, incluindo, além da psicologia, a medicina, a sociologia e a arquitetura e urbanismo.

 

Revista Saúde e Trânsito: Os acidentes de trânsito possuem muitas causas, sendo difícil, muitas vezes, determiná-las. Neste ponto, qual o diferencial da avaliação psicológica no teu ponto de vista? E ainda, o que precisamos, enquanto profissionais, para melhorarmos em nossa atuação na prevenção de mortes no trânsito?

Fábio de Cristo: Os acidentes de trânsito são multicausais e os aspectos psicológicos são uma delas, exercendo papel relevante. No tocante a prevenção, um dos processos de trabalho do psicólogo é a avaliação das condições para dirigir, sendo parte de um conjunto de esforços da sociedade para promover a paz no trânsito. Adicionalmente, a avaliação psicológica é usada na seleção de motoristas de empresas de transporte, na realização de diagnósticos organizacionais nessas instituições e no acompanhamento das condições de saúde mental dos funcionários (como, motoristas). Em todas essas ações, a psicologia tem potencial para contribuir direta ou indiretamente na segurança viária, fornecendo relevantes informações para a tomada de decisão dos gestores e para a formulação de políticas organizacionais. Nosso sucesso nessa empreitada passa, pelo menos, por cinco pilares:

(1) Qualificação/atualização - envolve conhecimentos sobre processos psicológicos, métodos e técnicas psicológicas, legislação, psicometria e estatística.

(2) Rigor técnico/ético - relativo ao planejamento e execução das etapas do processo de avaliação psicológica, minimizando falhas.

(3) Pesquisa - para subsidiar as discussões e conclusões do psicólogo.

(4) Articulação multi/interprofissional - maior integração do psicólogo com outras áreas.

(5) Articulação política - envolve o fortalecimento das instituições representativas da categoria, uma vez que, sem respaldo nas leis, algumas das atividades do psicólogo, como a avaliação de motoristas no processo de habilitação, poderão não existir ou serem prejudicadas. Por exemplo, com as propostas de alteração do Código de Trânsito Brasileiro, por meio do PL Nº3267/19, que amplia de cinco para dez anos o prazo de renovação da CNH.

 

Revista Saúde e Trânsito: Recentemente a Avaliação Psicológica foi reconhecida como uma especialidade da Psicologia. Considera que este reconhecimento incentivará a categoria na busca por especialização ou cursos de capacitação na área?

Fábio de Cristo: Acredito que esta seja uma das expectativas, afinal, grande parte dos problemas relacionados à avaliação psicológica tem, em sua gênese, a formação deficitária do psicólogo nesse campo, conforme apontam diversos estudos. O reconhecimento dessa especialidade pode, também, impulsionar uma expansão dos cursos de especialização pelo país, ampliando a possibilidade de acesso à atualização profissional. A capacidade desses cursos de atrair os psicólogos do trânsito dependerá dos tópicos abordados nas disciplinas. Por exemplo, sobre avaliação de motoristas e sobre outras aplicações da avaliação às situações e demandas das organizações de trabalho ligadas ao setor de trânsito e transporte (como, avaliação e acompanhamento da saúde mental e da qualidade de vida no trabalho dos funcionários). Isto se faz necessário especialmente no contexto atual de pandemia, cujos impactos poderão durar anos, fazendo com que os cursos de especialização considerem esses aspectos no processo avaliativo. A demanda por serviços de entrega tem aumentado e o trabalhador enfrenta o dilema de exercer sua atividade, porém num contexto de expansão de infecção por coronavírus.

 

Revista Saúde e Trânsito: Sabemos que a avaliação psicológica é muito mais que resultados de testes de atenção, memória, raciocínio lógico e personalidade. A resolução CFP nº 09/2018 é uma das normativas que fala a respeito, ressaltando as fontes fundamentais de um processo avaliativo. Entretanto, há um entendimento social de que existe uma “nota” para estar apto na avaliação, certas vezes reforçado pelo próprio profissional ao justificar o resultado exclusivamente baseado no teste. Neste sentido, recebemos queixas diversas, de que o psicólogo que não deu material para estudar. Qual sua percepção a respeito?

Fábio de Cristo: A situação relaciona-se, pelo menos, a dois aspectos. O primeiro deles, mais geral no campo da educação, envolvendo a associação do termo ‘avaliação’ com ‘prova’ e ‘nota’. A população geral, então, acaba transferindo isso para a avaliação psicológica. Essa transferência pode dar-se de modo natural, mas que devemos trabalhar, junto com o público, para estabelecer as diferenças existentes e a razão de não haver material para ser estudado.

O segundo aspecto está relacionado à maneira como nós estamos nos comunicando com as pessoas, individualmente ou institucionalmente. Talvez não estejamos sendo eficientes nisso, seja ao explicar o trabalho ou ao responder as dúvidas, dando margem às interpretações incorretas que, com o tempo, vão se consolidando socialmente. Por exemplo, a confusão entre avaliação psicológica (processo) e testagem psicológica (etapa do processo), frequentemente entendidas como sinônimas pelo público geral.

Resolver essas e outras questões não é simples. Existem iniciativas do Conselho Federal nesse sentido, por meio da Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica (CCAP). São exemplos disso, a cartilha “A turma da psicologia” e o “TOP 15 da avaliação psicológica” (que são GIFs enviados pelas redes sociais). São materiais que abordam questões básicas de avaliação psicológica para psicólogos e leigos (http://satepsi.cfp.org.br/campanha.cfm). Mas, também são necessárias ações específicas, nos níveis regionais e locais, que precisamos avançar.


Revista Saúde e Trânsito: Temos observado, em geral, profissionais desanimados com a área, com uma visão pessimista, e sabemos que o fator motivação pode interferir na qualidade do trabalho desenvolvido. Tens alguma sugestão de como inspirar os psicólogos que atuam no contexto do trânsito?

Fábio de Cristo: É compreensível que experimentemos desânimo em alguns momentos na jornada laboral, em função de circunstâncias diversas. Alguns psicólogos poderão ser mais impactados do que outros. Assim, deve avaliar “onde gostaria de chegar com meu trabalho?”. Se o profissional considerar que é desejável prosseguir com sua meta, pode buscar espaços ou maneiras de energizar-se. Participar de projetos coletivos pode ser um caminho. Por exemplo, fazer parte e agir de maneira atuante nas associações e conselhos profissionais, ajudando as atividades que envolvem a categoria; iniciar um curso ou uma pós-graduação para tentar construir respostas sistemáticas às questões práticas; compartilhar experiências de sucesso ou de dificuldades para pensar soluções criativas em eventos; e participar de grupos de discussão na internet (como a Rede Latino-Americana de Psicologia do Trânsito – Relapsitran –, conectando diversos psicólogos e pesquisadores; www.portalpsitran.com.br).

 

Revista Saúde e Trânsito: Em uma entrevista que realizou ao IBAP, em 2012, coloca que os psicólogos que trabalham com avaliação de motoristas “não se sentem qualificados para fazer pesquisa, dizem que só pode fazer quem é pesquisador; outros dizem que não tem tempo, pois precisam “trabalhar” ou “sobreviver”, como já ouvi, e, portanto, não consideram a pesquisa como um trabalho em si; outros, ainda, dizem que não são pagos para fazer pesquisas, mas para avaliar. E assim, em geral, os psicólogos do trânsito têm se dedicado muito mais à profissão do que à ciência que fundamenta a sua prática”. Observamos também que, embora alguns profissionais tenham interesse em produzir pesquisas, não sabem como fazer. Como mudar este cenário?

Fábio de Cristo: Existem caminhos para essa mudança. Todos envolvem uma postura ativa de busca. Então, o psicólogo transformar-se-á não só num “consumidor” mais criterioso, como também num “produtor” de informação/conhecimento. Quanto mais investir em suas habilidades de pesquisa, mais a qualidade da investigação tende a melhorar. Consequentemente, ganhará relevância na tomada de decisão e na produção de conhecimento.

No manual que organizamos, existem capítulos que podem ajudar a desenvolver essa expertise. Um deles, por exemplo, apresenta um modelo de atuação que integra diagnóstico (portanto, pesquisa) com intervenção baseada em evidências. Há outros que abordam os principais métodos e técnicas de pesquisas usados na área, assim como exemplos práticos de adaptação de medidas psicológicas para o contexto brasileiro e como elaborar um relato de pesquisa.

Além disso, algumas possibilidades para começar a fazer pesquisa são: formar/integrar grupo de estudo (por exemplo, no trabalho ou no conselho regional); implementar parceria com grupo de pesquisa de uma universidade para desenvolverem, juntos, estudos na instituição onde o psicólogo trabalha; ingressar numa pós-graduação stricto sensu (mestrado/doutorado) para desenvolver habilidades como pesquisador independente; implementar parceria com editoras de testes psicológicos interessadas, por exemplo, em desenvolver (novos) instrumentos ou criar tabelas padronizadas; integrar grupos de trabalho das associações científicas (como da Associação Brasileira de Psicologia de Tráfego – ABRAPSIT – e seus regionais; https://www.abrapsit.org.br); montar/ingressar numa atividade de consultoria, uma vez que essas atividades necessitam essencialmente de pesquisa aplicada para ajudar os gestores nas tomadas de decisões. Cada vez mais, felizmente, os psicólogos do trânsito têm buscado fazer pesquisa e têm entrado nos programas de pós para fazer mestrado e doutorado, prestando grandes contribuições para a ciência e a profissão.

Finalizo agradecendo o convite para a entrevista e parabenizo o Detran-PR pela importante iniciativa, com o lançamento da Revista Digital Saúde e Trânsito.

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Sobre o livro Psicologia do trânsito e transporte: Manual do especialista:

O livro é composto por 15 capítulos teórico-práticos que sugerem “como fundamentar” e ensina o “como fazer”. Buscou-se dar visibilidade e mais subsídios para a ampliação da atuação, contemplando atribuições potenciais ou que necessitam consolidação no trânsito e no transporte. A obra pretende apoiar a atuação daqueles psicólogos inseridos nas clínicas e nas organizações de trabalho do setor de trânsito e transporte, gestores públicos e administradores de empresas privadas do setor, dentre outros profissionais interessados de aproximar a psicologia de suas práticas.

O livro encontra-se disponível para compra no site da Editora Vetor: www.vetoreditora.com.br

O sumário está disponível online para consulta aqui: issuu.com/vetoreditora/docs/sumario_psicologia_transito-capa 

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